22.2.10

o amigo imaginado IV

pro meu pai, que me emprestou a imaginação

ser irmão mais velho é para poucos. ainda mais vindo de ventre parteiro como o da minha mãe, que em torno de si e entre seus braços e garras aninha afiada nós todos, suas crias, como que por sobrevivência, fazendo-nos muralha tão forte e robusta quanto o banco de madeira da copa sobre o qual fazíamos nossas refeições diárias. assim sendo, decidi desde cedo que faria por honrar a primogenitura com as mais diversas façanhas que eu fosse capaz de conceber. a maior delas foi o mamute. pequeno, marrom e chifrudo, era uma obra prima de copacabana e só eu era capaz de vê-lo. por esse mesmo motivo, o animalzinho durante anos roubou rios de lágrimas da minha irmã mais nova, afogada constantemente na mais pura decepção. o mamutinho, eu afirmava com convicção, era natural do planeta murano. certo dia apareceu em nosso apartamento como num passe de mágica, caindo-me como uma luva na arte de manipular irmãos mais novos. era simples: o bichinho, eu dizia a eles, só aparecia para quem mais eu quisesse. e para isso, claro, eu deveria ser agradado ao extremo. graças ao pequeno elefante, durante anos recebi todos os possíveis favores dos meus irmãos, que agarravam-se à esperança de um dia ver o meu, o nosso amigo imaginário. meu robusto mamute, minha cria chifruda e marrom, minha pequena bola de pelos. minha companhia de refeições e trapaças, minha versão animal. mas um bom amigo imaginário não sai por aí mostrando seus contornos para os outros. e por isso eu posso afirmar, sem titubear, que nenhum outro olho humano um dia sequer o avistou, seja no longínquo murano ou na copa de um apartamento qualquer de copacabana. infelizmente o pequeno não me rende mais favores e agrados, mas carrego-o hoje como um troféu da juventude. inquebrável troféu imaginário.

4 comentários:

Lucas disse...

gostei muito mesmo! acho que hoje em dia o mamute poderia se mostrar pra todos em copacabana, e talvez mesmo assim ninguém o percebesse.

Lepz disse...

muito bom e, além de tudo, 'mamute' é uma palavra que acho que soa bem. :)

Unknown disse...

Filha,
que bom compartilhar o mamutinho com o mundo...
Minha irmã até hoja procura por ele...
bjs,
Pai

Anônimo disse...

papai e mamãe passaram um longo mês viajando pela europa e de culpa trouxeram um enorme rato rosa para a pequena inês. enorme mesmo. pequena inês, no calor de seus quatro anos cariocas, mal conseguia abraçá-lo quando o deitava a seu lado à noite. isso não impediu que durante pelo menos outros quatro anos deitasse todas as noites a seu lado sussurrando em sua proporcionalmente enorme orelha seu dia, seus sonhos e seus dramas.

um dia o enorme rato rosa tornou-se pequeno demais para ser abraçado e sua pelúcia passou a esquentar demais a cama. mudou-se para cima do armário e vive até hoje em silêncio.