28.4.08

Amarelinha

“Y era tan natural cruzar la calle, subir los peldaños del puente, entrar en su delgada cintura y acercarme a la Maga que sonreía sin sorpresa, convencida como yo de que un encuentro casual era lo menos casual en nuestras vidas, y que la gente que se da cites precisas es la misma que necesita papel rayado para escribirse o que aprieta desde abajo el tubo de dentífrico.” (Julio Cortázar)

Às 6:30h da manhã, depois de uma certa relutância em abandonar o sono profundo no qual mergulhava, o despertador com som de pássaros campestres me acorda definitivamente. Quando abro os olhos ainda pesados vem a sensação de sonho recém interrompido, e aliada ao gosto de sono que se mantém na boca, me surge um urro reclamão involuntário, ainda que mental.
No espelho do banheiro tento encarar a face insone, mas estou tonta e o máximo que alcanço é a tênue imagem de um rosto embaçado. Ainda me vêm na cabeça cenas dos filmes assistidos na madrugada anterior, e o gosto por essas impressões não permite que eu me arrependa pelas apenas três horas de sono. (Melhor a mente acessa que um reflexo seguro no espelho.)
Faz sol e ponho os óculos escuros antes mesmo de me lançar às ruas. Dessa vez lembro de botar O bestiário na bolsa pra companhia no trajeto de ônibus à faculdade. A música eu ainda esqueço. Meu corpo cruza o portão verde do prédio e, ainda como quem caminha em nuvens por causa do sono, o primeiro passo fixado na calçada suja - como sempre são as calçadas da Glória - se dá sobre um céu desenhado a giz branco no cinza do chão. Jogo de amarelinha riscado por linhas tortas de mãos infantis, provavelmente no dia anterior. Direto no céu, penso, recordando a dificuldade de alcança-lo naqueles tempos.
A calçada é longa e às vezes ameaçadora. Mas a manhã é bonita e o sol que recém passa o horizonte ilumina a rua dando um tom otimista aos seus traçados. O metrô rotineiro desenha seus primeiros contornos à minha vista. Primeiro momento do dia em que posso parar e me deixar guiar pelos pensamentos ativos da manhã. É como se eu renascesse limpa e sóbria, e fosse necessário deixar que esses se manifestem como por vontade própria para começar a desenhar o dia:
Meu dia nasceu apesar do corpo que ainda dorme em pé. E com ele a grande correria das coisas, as buscas por concluir trajetos, os passos sempre cuidadosamente planejados em busca de fins. O cinema da noite anterior pela satisfação da alma, os olhos que mal se abrem e já seguem em direção à faculdade, livros após livros lidos e estudados na tentativa de entender um pouco melhor os homens, o metrô pra chegar rápido, e eu quase sempre tenho pressa. Enfim, uma grande dança de ações escolhidas em meio a tudo - e é sempre necessário esquematizar o presente e calcular o futuro, falsa segurança do homem que finge controlar sua própria vida.
E de repente é como se eu me perguntasse o que seria do dia que surpresamente começara pelo céu, em tempos em que com mãos grandes e traços tortos procuro acordar no dia seguinte e ver o sol que, ao cruzar o horizonte, reflete os passos da calçada cinza, minha longa e ameaçadora calçada cinza.

2 comentários:

I. D'Avila disse...

Preciso ser tão presente quanto ao teu texto e parar de me projetar tanto. Você escolhe, dona dos sentidos, o ritmo que as palavras vão dançar nos teus dedos. Belo texto Di!

I. D'Avila disse...

Diii! Tem texto novo no pia! Tá convidada a colocar a colher! Beijao!